sexta-feira, 5 de agosto de 2011

SURDOS, EXTRATERRESTRES E CORNUCÓPIAS


Reproduzo aqui artigo publicado no blog do Itevaldo.

por ADRIANO RODRIGUES**
À medida que avança meu convívio com essa condição de portador de deficiência, me convenço cada vez mais que entrei para um grupo de extraterrestres socioeconômicos.
Caro leitor, nasci e vivo atualmente na capital maranhense, São Luís, incluída pelo Censo 2010 do IBGE no grupo de nove capitais brasileiras com mais de um milhão de habitantes. Não somos uma metrópole, nem por critérios demográficos e tampouco por critérios estruturais, mas, convenhamos, 1.014.837 pessoas é muita coisa!
Talvez por isso tenha dificuldade de entender por que nos estabelecimentos comerciais aos quais vou em São Luís sou tratado como o único surdo da cidade.
Antes de me acusarem de dizer que essa é uma situação exclusivamente ludovicense, afirmo preventivamente que isso é generalizado. Já me aconteceu várias vezes em todas as cidades que visitei depois que fiquei surdo. E tenho certeza que vai acontecer em qualquer outra cidade que visitar!
Bom, voltemos ao microcosmo ludovicense…
Pois bem, em São Luís, foram raras as vezes em que entrei numa loja, avisei que sou surdo e os vendedores não agiram como se estivessem vendo um ser de outro  mundo. “Meu Deus! Um surdo!”, denunciam suas caras e expressões faciais.
Até ouso afirmar que, nessas horas, a diferença entre o que eu falo e o que eles ouvem é abismal. Alguns agem como se eu estivesse anunciando um assalto ou um estupro. Ou como se eu estivesse dizendo “Leve-me ao seu líder!”.
E vamos combinar que o surdo da estória sou eu…
Até entendo que seja “natural” a recorrência de que a maioria das pessoas achem que não sou surdo pelo fato de eu falar normalmente. Somente lamento que seja a concepção popular de que os surdos são somente as pessoas que nasceram sem audição e que, por consequência, não aprenderam a vocalizar e aprender a se comunicar falando como a maioria das pessoas.
Eu mesmo não sabia disso até ter sido mergulhado na condição de surdo. Mas esse é assunto pra outro capítulo.
Em São Luís (aquela cidade que tem 1.014.837 habitantes, segundo o IBGE, lembram?) é frequente que, por mim questionados, prestadores de serviços (taxistas e vendedores, em sua maioria), revelem que fui/sou seu primeiro cliente surdo.
Apesar da boa vontade da maioria deles, é inevitável observar que parece que, sob o aspecto comercial, a maioria das pessoas acha que quando você é surdo, você não tem uma vida além da sua deficiência. Não consome nenhum produto. Não usufrui nenhum serviço. Não tem nenhuma necessidade material que não seja uma prótese auditiva. Parece que a resposta para suas necessidades materiais brotam infinitamente de uma cornucópia*.
Para ficar só em um aspecto da observação que me levou a escrever o que você está lendo agora, devo dizer que talvez essa concepção comercialmente equivocada explique o reduzidíssimo número de comerciais legendados exibidos na TV brasileira.
Nestes 13 meses de surdez, só vi um VT não-governamental legendado: um da Coca-Cola que, feliz e brilhantemente, chegou à conclusão de que surdos também bebem refrigerante!
Mas o resto das empresas ainda não descobriu que surdos dirigem, usam roupas, vêem TV, viajam, usam artigos de higiene e beleza.
Compram.
Enfim, vivem.
Não somos ETs. Somos pessoas com necessidades de consumo e com dinheiro para provê-las. Somente não ouvimos.
É tão difícil assim lembrar disso?!
*Mitologia. Vaso em forma de chifre, com frutas e flores que dele extravasam profusamente, antigo símbolo da fertilidade, riqueza, abundância, e que, hoje, simboliza a agricultura e o comércio.
** Adriano Rodrigues, 34, é jornalista e consumidor. Ficou surdo há um ano e não aceita a condição extraterrestre que algumas empresas tentam lhe impor.

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