sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Para entender a técnica


         Falar em técnica (techné) e nos problemas que o tema suscita, significa questionar a essência das estruturas que ajudaram a construir o saber e o pensar na modernidade ocidental, a partir de uma dada hermenêutica da história da razão. Consiste ainda em se falar sobre algo que se constitui enquanto uma forma de “desencobrimento” do real, onde vige e vigora ainda uma verdade.

         Quando o filósofo alemão Martin Heidegger profere, em maio de 1953, sua famosa conferência “A Questão da Técnica”, parecia ele querer, com aquela, intimar o meio acadêmico europeu de então a dar-se conta das implicações, já em curso, da determinação da existência segundo um modo de ser e de operar que ora se instaurava com tremenda magnitude e cujos reflexos futuros ainda pouco se sabia.

         Tomando como ponto de partida a questão do fundamento da existência, o autor de “Ser e Tempo”, nos remete à pergunta pelos modos de proceder através dos quais a racionalidade técnica se estabelece no horizonte historial, permeando a distante relação entre o Dasein (ser-aí-no-mundo) – termo que, numa leitura simplificada, serve para denominar o homem – e a essência da verdade. É envolvido por tais circunstâncias que Heidegger buscará interpretar o que se encontra guardado no íntimo da determinação do apoderamento da realidade pelo fenômeno da técnica moderna.

         Sabe-se que a consciência do homem de nosso tempo opera, predominantemente, a partir de certos preceitos formais e conexões lógicas que o levam necessariamente a querer impor todas as possibilidades de desempenho perante os entes intramundanos (entes à mão, objetos, instrumentos), a propor representações e adequá-las aos seus projetos. Ao cogitar, portanto, o homem formula conceitos, depois os transfere a uma razão discursiva (linguagem) para, em seguida, concretizá-la numa disposição que tende a encarar a natureza segundo um modo de ser objetal. O que implica dizer que a consciência, em sua intencionalidade, tende a relacionar-se tecnicamente com o real, ou seja, com tudo aquilo que lhe está posto ao uso, ao alcance das mãos, à sua manualidade (Zuhandenheit). Nesse prisma, o homem passa a dispor do monopólio do que Heidegger chamou de “uso regulamentado dos entes”. Talvez por isso, se assim podemos inferir, a ciência se depare “apenas” com as coisas que seu modo de representação lhe permita ver como objeto possível, anulando, com isso, toda e qualquer outra forma de ser e aparecer (fenômeno).

         A essência da técnica, enquanto esse “des-encobrimento”, esse “desabrigamento”, é vislumbrada na égide do poder de controle e previsão manifestados, sobretudo, pelas ciências da natureza, na ênfase por elas dada à capacidade humana de domínio sobre a matéria. Nesse sentido, a técnica seria o modo privilegiado do desabrigar. Modo este que o nosso tempo elegeu para dominar e requerer do mundo um âmbito próprio para o seu produzir.

         Na técnica moderna, um produzir antipoiético impera sobre coisas e seres, desafiando a natureza e entregar-se por completo, fornecendo ao homem toda a sua energia. Requerendo, ininterruptamente, o que nela há de essencial.

         A floresta, que sucumbe ao corte incisivo das motosserras, é desafiada e exigida em suas riquezas orgânicas; os rios, instados a gerar a força motriz das usinas e a sustentar a avidez das massas sedentas; o campo, o solo, o subsolo, explorados à exaustão, como exigência do perpétuo produzir de uma indústria mundializada.

         Mas é justamente pelo fato de que tudo opera segundo tais princípios, de que tudo deve funcionar num ritmo propício às produções maquinais, aos padrões operatórios, segundo uma ordem coerente e estável, de que a sociedade tecnológica gera seus admiráveis prodígios em larga escala, de que tudo se dá, aparentemente, quase à perfeição, - e que continuamos, portanto, a produzir energia, a manipular genes, a clonar seres, a mexer nos núcleos dos átomos, a projetar sondas espaciais que buscarão outros planetas – justamente por isso, é que devemos suspeitar que estamos nós entregues ao primado da técnica, deixando-nos guiar por ela, e não o contrário. Em outras palavras: o homem passa a sofrer o controle, a exigência e a injunção de um poder que se manifesta à sua vista e que ele próprio não domina. Move-se, sem perceber, no âmbito desse apelo e dessa imposição.

Por Rogério Henrique Castro Rocha
        


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