segunda-feira, 28 de julho de 2014

Como a experiência da 1ª guerra mundial definiu obras de escritores

Por Maria Fernanda Rodrigues – O Estado de S. Paulo
 
O americano Ernest Hemingway era um garoto recém-saído do colégio quando, em 1918, foi dirigir ambulâncias para a Cruz Vermelha no front italiano. Aos 19 anos, o alemão Ernst Jünger estava no campo de batalha, matando e lutando para não morrer. J. R. R. Tolkien, estudante de Oxford, juntou-se ao exército inglês. Guillaume Apollinaire, poeta francês nascido na Itália, já era um artista reconhecido no momento em que se feriu gravemente em combate.

Hemingway se recuperando de ferimento de guerra

Ao lado de C. S. Lewis, Bertolt Brecht, e. e. cummings, Erich Maria Remarque, Rudyard Kipling, John dos Passos, William Faulkner, Gertrude Stein, Agatha Christie e outros, estes autores fizeram parte de uma geração marcada pela guerra. E a experiência no conflito, em diferentes níveis e dos dois lados, acabaria influenciando suas obras – seja como tema de livros ou como experiência definidora dos artistas que eles se tornariam. Para eles, a escrita foi, de certa forma, uma maneira de elaborar o trauma. “Escrever é uma forma privilegiada de simbolizar, representar uma experiência que por sua intensidade e violência transborda os limites do ser. É uma tentativa de domá-la, integrá-la, retirar-lhe o poder desagregador e desestruturante que carrega em si”, diz o psicanalista Sérgio Telles.

O caso de Tolkien é significativo. O autor de O Hobbit e de O Senhor dos Anéis nunca escreveu uma linha sobre o conflito. Mas, para John Garth, um de seus biógrafos, foi talvez o mais radical de todos os escritores marcados pela guerra. “A experiência no front foi decisiva em sua escolha pela escrita. Ela virou seu mundo de cabeça para baixo, chacoalhou sua estrutura e despertou sua imaginação e seu interesse pelos contos de fada – que tratam, geralmente, do indivíduo que entra em contato com perigos estranhos e mortais. Escrever seu próprio conto de fadas pode ter ajudado Tolkien a sobreviver quase ileso ao trauma da guerra”, conta ao Estado o autor de Tolkien and the Great War: The Threshold of Middle-earth, inédito no País.

O escritor, porém, não entrou na guerra por ideologia. Tinha 22 anos quando a Inglaterra se mobilizou e, ao contrário de muitos colegas, ele preferiu continuar os estudos e não se apresentou como voluntário naquele outono de 1914. Mas a cidade estava ficando vazia e o câmpus, abandonado. Desconfortável com a situação, e sem noção do que representaria e de quanto tempo duraria aquele conflito, ele acabou se juntando ao Corpo de Treinamentos Para Oficiais para se preparar para um possível alistamento. O então estudante de língua e literatura inglesa aprendeu a atirar, e se surpreendeu ao descobrir que gostou daquilo, conta Michael White, seu outro biógrafo, em J. R. R. Tolkien – O Senhor da Fantasia. Ele aprendeu também a ler mapas, conheceu os métodos de guerra e suas armas. Mas foi só em 1916 que o tenente Tolkien foi mandado ao front – e logo para a sangrenta batalha de Somme, que já estava em andamento e que apenas no primeiro dia mataria 19 mil soldados britânicos, entre os quais o amigo Rob Gilson.

O tenente Tolkien em 1916

White relata que Tolkien foi diversas vezes às trincheiras, matou, e voltou ileso de todas elas. A morte de amigos, os corpos espalhados e o cheiro de sangue o aproximavam da ideia de sua própria mortalidade, mas o que quase o levou foi a febre da trincheira. Por causa dela, ele foi se tratar longe dos campos de batalha. Tentou voltar à guerra, mas sempre tinha uma recaída.

Autor de As Crônicas de Nárnia, C.S. Lewis também não tratou diretamente do conflito em sua obra, mas seu mundo ficcional, onde se luta contra a escuridão e o abismo, certamente reflete a vivência nas trincheiras. Em seu livro sobre Tolkien, White comenta que Lewis dedica três capítulos à desagradável experiência na escola pública e apenas uma pequena parte de um capítulo à sua participação na guerra, e o cita: “É muito distante do resto da minha experiência (…) e frequentemente parece ter acontecido com outra pessoa”. Mas ele esteve lá, se feriu, e na volta cumpriu a promessa feita a um amigo: o combinado era que, caso um morresse, o outro cuidaria da família do morto.

Motorista. A experiência de Hemingway não foi tão radical, embora ele tenha se ferido durante seu trabalho como motorista. Mas a guerra rendeu a ele algumas histórias. Em 1926, lançou O Sol Também se Levanta, em que o protagonista é um veterano de guerra. Em 1929, publicou Adeus às Armas, este sim um romance situado durante o conflito e que narra a história de amor entre um motorista de ambulância e uma enfermeira.

Hemingway e a enfermeira Agnes von Kurowsky

Relato impressionante da experiência no front está em Tempestade de Aço, diário de Ernst Jünger, que lutaria ainda na 2.ª Guerra – ele viveu até os 102 anos. Nada Novo no Front, de Erich Maria Remarque, também retrata de forma vívida a experiência de combate e aborda a inadequação do soldado ao voltar para casa e para o convívio com civis. Já em As Aventuras do Bom Soldado Švejk, o ex-combatente Jaroslav Hasek narra as peripécias de um checo que se mete em muita confusão, optando pelo humor na hora de fazer contundente denúncia do absurdo da guerra – o livro acaba de ser lançado no Brasil. 
 
O alemão Ernst Jünger
Diário de Jünger deu origem ao livro ‘Tempestade de Aço’

O poeta e. e. cummings teve uma passagem traumática pelo conflito. Voluntário, acabou preso por engano, em campo de concentração, sob alegação de espionagem – e trata disso no romance autobiográfico A Cela Enorme, de 1922, e em alguns poemas. Louis-Ferdinand Céline se feriu no conflito e publicou, em 1932, Viagem ao Fim da Noite, cujo protagonista também passa pela 1.ª Guerra. Rudyard Kipling, diretor de propaganda para as colônias britânicas, voltou do conflito com um caderno de poemas.

John dos Passos foi motorista do exército e, em 1921, lançou o romance Três Soldados, sobre um vendedor, um jovem camponês e um músico que respondem à pressão da guerra com rancor e fúria assassina. Há quem diga que o americano William Faulkner não chegou a ver de perto uma batalha, embora tenha se juntado à Força Aérea Canadense. No entanto, a guerra foi tão marcante que, em 1926, ele lançaria Paga de Soldado, sobre um veterano que, ao voltar para casa, é repudiado por todos; a questão do desterrado pela guerra apareceria em outras obras, como em Sartoris, na qual trata dos irmãos gêmeos John e Bayard – os dois vão à guerra como aviadores: um deles morre e o outro testemunha tudo e volta para casa atormentado.

Gertrude Stein comprou uma caminhonete e, com a companheira Alice Toklas, distribuiu medicamentos para hospitais militares na França. Bertolt Brecht estudava Medicina e passou um mês trabalhando em hospital militar antes do fim da guerra. Agatha Christie trabalhou como enfermeira da Cruz Vermelha e começou a escrever suas histórias policiais nesse período. Scott Fitzgerald se alistou no exército americano, mas o armistício chegou antes que ele completasse o treinamento.

Gertrude Stein e Alice Toklas

“A arte tem papel essencial e não sobreviveríamos sem ela. O que elabora a vida e o traumático não é o pensamento raciocinado ou conceitual, e sim o sonhar e, como dizia o psicanalista Otto Rank, a arte é o sonho da humanidade. Os romances e os diários são produto desse processo de sonhar e, ao mesmo tempo, serão matéria-prima para quem os lê – de produzir um sonho próprio de cada um que ajude a passagem nos trajetos da vida”, explica o psicanalista Leopold Nosek.

Fonte: http://blogs.estadao.com.br/babel/a-primeira-guerra-mundial-os-escritores-que-lutaram-e-como-a-experiencia-no-front-definiu-suas-obras/

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