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quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Tentando curar o que não é doença, adoecem a Constituição

Saul Tourinho Leal e Rafael Wowk1
Esse mês de setembro não tem sido um bom mês para os direitos constitucionais. Nem bem tomávamos fôlego após boicotes conservadores e censuras judiciais, tivemos a notícia da decisão do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª vara Federal da seção judiciária do Distrito Federal.
O magistrado, numa Audiência de Justificação Prévia exigida pelo art. 300, § 2o do Código de Processo Civil, apreciou o pedido de tutela de urgência formulado na Ação Popular 1011189-79.2017.4.01.3400, ajuizada por duas psicólogas e um psicólogo, contra o Conselho Federal de Psicologia.
Ao que parece, haviam sido, as autoras, penalizadas pelo referido Conselho por oferecerem a "terapia de reorientação sexual", conhecida, no Brasil, como "cura gay". Para se verem livres de suas advertências, atacaram a resolução 01/99 do Conselho, cuja interpretação servia de base para não se admitir a dita "terapia".
A Ação Popular objetiva a "(...) suspensão dos efeitos da resolução 01/99, a qual estabeleceu normas de atuação para os psicólogos em relação às questões relacionadas à orientação sexual". A resolução constituiria "ato lesivo ao patrimônio cultural e científico do país, na medida em que restringe a liberdade de pesquisa científica assegurada a todos os psicólogos pela Constituição, em seu art. 5º, IX".
Na prática, a Ação requer, por ofensa à Constituição, a declaração de inconstitucionalidade da resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia, aplicável aos mais de 300 mil profissionais espalhados pelo país. O dispositivo constitucional violado seria o inciso IX do art. 5o, que diz: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação independentemente de censura ou licença".
Na audiência, foram formulados os seguintes questionamentos aos autores: "a) pretendem os autores divulgar ou propor terapia tendentes à reorientação sexual?; b) os autores estão impedidos ou foram punidos pelo C.F.P. por prestarem suporte psicológico, ainda que solicitados e de forma reservada, às pessoas desejosas de uma reorientação sexual? c) no campo científico da sexualidade, em especial no que diz respeito ao comportamento ou às práticas homoeróticas, o que se permite ao psicólogo estudar ou clinicar sem contraria a resolução 01/1999 do C.F.P.?"
O Conselho não se intimidou. Para ele, as "terapias de reversão sexual" não têm resolutividade, além de provocarem sequelas e agravos ao sofrimento psíquico. Desde a Classificação Internacional de Doenças (CID) nº 10, de 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) entende que "a orientação sexual por si não deve ser vista como um transtorno". Dizer a uma pessoa que ela será tratada psicologicamente para que "deixe de ser gay" seria, além de uma estupidez, uma violência.
A compreensão de que a orientação sexual não pode ser enxergada, numa sociedade civilizada, como patologia ou distúrbio, não é novidade. A expressão "homoafetividade", por exemplo, nasceu exatamente para evitar a associação entre a orientação sexual e doenças. Na obra "União Homossexual, o Preconceito e a Justiça", de Maria Berenice Dias, consta: "Há palavras que carregam o estigma do preconceito". Assim, o afeto para a pessoa do mesmo sexo chamava-se 'homossexualismo'. Reconhecida a inconveniência do sufixo 'ismo', que está ligado a doença, passou-se a falar em 'homossexualidade', que sinaliza um determinado jeito de ser. Tal mudança, no entanto, não foi suficiente para pôr fim ao repúdio social ao amor entre iguais”. Daí o aparecimento do termo "homoafetividade".
As razões apresentadas pelo Conselho Federal de Psicologia, contudo, não impressionaram o juiz. "Defiro, em parte, a liminar requerida para, sem suspender os efeitos da resolução 01/99, determinar ao Conselho Federal de Psicologia que não a interprete de modo a impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re) orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia por parte do C.F.P., em razão do disposto no art. 5o, inciso IX, da Constituição de 1988”, consta da decisão".
Vale refletir. Por quê uma ação popular para discutir isso? Segundo o art. 5o, LXXIII, da Constituição, qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular, dentre outros, ato lesivo ao patrimônio cultural. Assumir como premissa que a vedação a terapias que prometam "curar" gays violaria o patrimônio cultural brasileiro já soa, por si só, um preconceito assombroso.
Enquanto a decisão da 14a vara Federal do Distrito Federal depositou suas esperanças num "tratamento psicológico" que permita a "reorientação sexual", o Supremo Tribunal Federa, no leading case que reconheceu a união estável entre casais homoafetivos (ADI 4277 e ADPF 132), encontrou, na psicologia, uma das razões para se separar orientação sexual de patologia: "O que, por certo, inspirou Jung (Carl Gustav) a enunciar que 'A homossexualidade, porém, é entendida não como anomalia patológica, mas como identidade psíquica e, portanto, como equilíbrio específico que o sujeito encontra no seu processo de individuação'", anotou o ministro Carlos Ayres Britto, em seu voto-vencedor. No caso, a psicologia foi instrumento de destruição de estigmas perversos, não de reafirmação deles.
Há outro ponto: Uma liminar dando interpretação conforme à Constituição de um ato normativo em vigor por 18 anos? Qual o perigo da demora a justificar essa tutela de urgência? Não vigorou, a Resolução, por quase duas décadas?
Também é válido questionar a respeito da capacidade institucional do Judiciário em definir quais terapias hão de compor a psicologia brasileira. Teriam, os julgadores, capacidade institucional para, sob a invocação de proteção do patrimônio cultural, driblar orientações da OMS e, derrubando uma resolução do Conselho Federal de Psicologia, autorizar psicólogos a oferecerem um tratamento reputado não apenas inútil, mas perturbador ao bem-estar dos pacientes? Isso, para que essa dor e sofrimento sejam vistos como avanço científico? Que tipo de sociedade faz isso com os seus?
Resta saber se o que os autores populares fizeram não foi se valerem desta ação popular para proceder à declaração de inconstitucionalidade de um ato normativo com efeitos gerais (erga omnes), como ocorre com o julgamento, pelo STF, da ação direta de inconstitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito fundamental. Isso porque, não cabe, à ação popular, fazer as vezes destas ações, sobre pena de se usurpar a competência do Supremo no exercício de sua função precípua de guarda da Constituição. Segundo o art. 18 da lei 4.717/65, no caso da ação popular, "a sentença terá eficácia de coisa julgada oponível 'erga omnes'".
A resolução 01/99 tem efeitos mais do que concretos, pois disciplina o comportamento de todos os psicólogos do Brasil (são mais de 300 mil), valendo-se de uma linguagem típica, pela sua fluidez, de lei. A primeira parte do art. 3° da Resolução, diz: "Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas (...)". Seus comandos encarnam princípios diretamente constitucionais, como o da vedação ao preconceito em razão do sexo (Preâmbulo, art. 3o, IV e art. 5ocaput, da Constituição).
O STF já reconheceu a viabilidade de se aferir a constitucionalidade, pela via do controle abstrato, de vários tipos de resoluções: 1) Resolução de qualquer Tribunal (ADI 3544, Min. Edson Fachin, 30.6.2017); 2) Resolução do Conselho Nacional de Justiça (ADI 4638 MC-Ref, Min. Marco Aurélio, 8.2.2012); 3) Resolução do Conselho Nacional de Magistratura (ADI 4140, Min. Ellen Gracie, 29.6.2011); 4) Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público (ADI 3831, Min. Cármen Lúcia, 4.6.2007); 5) Resolução do Presidente do Conselho da Justiça Federal (ADI 3126 MC, Min. Gilmar Mendes, 17.2.2005); 6) Resolução do Conselho Monetário Nacional (ADI 2317 MC, Min. Ilmar Galvão, 19.12.2000); 7) Resolução do Conselho Administrativo do Superior Tribunal de Justiça (ADI 1610 (Min. Sydney Sanches, 3.3.1999); 8) Resolução do Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ADI 51, Min. Paulo Brossard, 25.10.1989).
Indo além, ao proceder à técnica da interpretação conforme à Constituição, numa sentença erga omnes, a decisão usurpa, novamente, a competência do Supremo. Segundo o art. 28, parágrafo único, da lei 9.868/99, que disciplina o julgamento de ações do controle concentrado no STF, a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme à Constituição, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. O uso da técnica, numa ação popular, coloca a decisão em rota de colisão com a Suprema Corte, pois a converte, em desrespeito ao art. 97 da Constituição (cláusula de reserva de Plenário), em resposta máxima de guarda da nossa Carta.
Mas esse vício tem cura. O art. 102, I, 'l', da Constituição, dispõe que compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, a reclamação para a preservação de sua competência. O art. 988, I, do CPC, diz que "caberá reclamação da 'parte interessada' ou do Ministério Público para preservar a competência do tribunal".
Em muitos países, têm sido, as leis e a Constituição, instrumentos de transformação empoderadores das pessoas pelo acesso a direitos. Edwin Cameron, juiz da Corte Constitucional da África do Sul, uma autoridade gay e soropositiva, anotou em sua obra, "Justice", o seguinte: "O direito ofereceu-me a chance de remediar e reparar a minha vida. A Constituição oferece a nós a chance de remediar o nosso país". Não é diferente com a Carta brasileira, cujos comandos abrem espaço para a fraternidade necessária a superar entraves ao reconhecimento integral, e orgulhoso, da dignidade da pessoa humana. Segundo o Ministro Carlos Ayres Britto, "a sociedade não pode ter outro fim que não seja a busca da felicidade individual dos seus membros e a permanência, equilíbrio e evolução dela própria"2. Isso é fruto de uma "democracia fraternal", na qual o pluralismo se "concilia com o não-preconceito"3.
Além das questões quanto ao cabimento da ação popular, há, ainda, elementos materiais dignos de nota. Primeiramente, nenhuma liberdade desse mundo autoriza um profissional da saúde a oferecer, como serviço, a "cura" da orientação sexual de alguém, ainda que atribua, a essa "terapia", outro nome (reorientação ou reversão sexual, por exemplo). É algo indigno. Segundo o ministro Carlos Ayres Britto, "a pessoa humana passou a ser vista como portadora de uma dignidade inata. Por isso que titular do 'inalienável' direito de se assumir tal como é: um microcosmo"4. Ninguém pode abrir mão de sua dignidade, daí não impressionar o argumento de que o tratamento é voluntário e para adultos. Pouco importa.
Nesse aspecto, a liberdade é limitada pela própria Constituição. Tanto que o STF, recentemente, apreciando a cautelar na Ação direta de Inconstitucionalidade 5501 (Min. Marco Aurélio, Pleno, 19.5.2016), registrou: "Foi-se o tempo da busca desenfreada pela cura sem o correspondente cuidado com a segurança e eficácia das substâncias". Isso, para "afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano", anotou o Ministro Marco Aurélio, declarando a inconstitucionalidade da lei que prometia a cura das pessoas com câncer pelo uso da fosfoetanolamina, até mesmo sem a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
A vida que a Constituição quer para todos nós é uma vida abundante. Ela determina que se controle o emprego de técnicas e métodos que comportem risco para a qualidade de vida (art. 225, V). No voto que proferiu em favor das uniões homoafetivas, o Ministro Carlos Ayres Britto registrou que a orientação sexual é fato "de auto-estima no mais elevado ponto da consciência. Auto-estima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade". Noutras palavras: não há felicidade sem dignidade. São faces da mesma moeda.
Ninguém jamais será privado, numa democracia constitucional como a brasileira, de estudar o que quer que seja, de pesquisar aquilo que deve ser pesquisado. Psicólogos não só podem, como devem, se dedicar a explorar, com seus estudos e pesquisas, todas as nuances da sexualidade humana. Todavia, numa comunidade atenta tanto ao preconceito quanto ao sofrimento, é possível, por meio de uma resolução, que um conselho profissional advirta profissionais da saúde, como os psicólogos, de que não devem oferecer às pessoas iniciativas que sugiram que alguém pode – ou deve – ser "curado" por um fato da vida: ser gay. Isso é cruel.
E o curioso é saber que o mesmo Judiciário que pode, pelas suas decisões, abrir caminho para a reafirmação de estigmas é o mesmo que cede espaço para o empoderamento. Dia 5.5.2011, o STF apreciou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132. Conferiu-se igualdade de direitos às uniões homoafetivas. "A preferência sexual se põe como direta emanação do princípio da 'dignidade da pessoa humana' (inciso III do art. 1º da CF), e, assim, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal", anotou o Ministro Carlos Ayres Britto, relator.
Deve ser, a dignidade da pessoa humana, o princípio regedor da matéria relativa à constitucionalidade da resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia. Um princípio do qual ninguém abre mão, nem mesmo os adultos voluntariamente. Também um princípio que, protegendo minorias de danos ao seu bem-estar subjetivo, impede que se abrace a ideia de que a liberdade deve ser utilizada para se impor danos aos outros. Nem nos clássicos, nem nos contemporâneos, jamais, a liberdade se prestou a isso.
Gays têm todo o direito de ter uma sadia vida psíquica. Diante dos dilemas da vida, podem relatar seus dramas e tentar encontrar explicações compatíveis com o que se espera da psicologia. Todavia, psicólogo nenhum pode abrir as portas do seu consultório para implementar uma terapia que prometa fazer o gay "deixar de ser gay". É um embuste. Quando deixamos de reconhecer o potencial sofrimento do semelhante, perdemos o que temos de mais valioso em nós: a nossa humanidade.
A orientação sexual, e a total liberdade a ela inerente, são conquistas civilizatórias decorrentes de extrema dedicação de gerações e gerações que, marginalizadas por serem quem são, não tombaram diante do preconceito e seguiram acreditando que não há o que ser curado na exuberância da sexualidade humana. Ninguém mais neste país deve passar pela violência de ser tratado, por profissionais da saúde para que "deixe de ser gay". Viramos essa página. Passou. Acabou.
A Constituição enxerga todos os gays como semelhantes que devem, cada vez mais, ser empoderados para que, livres e felizes, numa sociedade fraterna e sem preconceitos, deem as mãos aos seus concidadãos na dura tarefa de reconstruir os laços esgarçados da nossa comunidade. Há espaço, respeito e direitos para todos, tantos quantas são as cores do arco-íris. Não há, nessa condição humana, nada a ser curado. Pelo contrário. Há o que ser, como um plus da vida, celebrado. Ainda bem.
__________
1 Rafael Wowk é mestre em Direito pela Sorbonne – Paris 1 e pela New York University. Ambos integram o escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.
2 O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 21.
3 Ibidem, p. 34.

4 Ibidem, p. 20.

Fonte: Migalhas

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Corrupção no processo legislativo torna lei inconstitucional? (por Fábio Lima Quintas)


 


No curso da operação zelotes, investiga-se a possibilidade de ter havido a “compra” de medidas provisórias[1]. Nas delações havidas no curso da operação “lava jato”, sugere-se que a Odebrecht teria também pago pela aprovação de leis[2].
A comprovação da ocorrência desses eventos levantará dúvidas não apenas a respeito da legitimidade do processo legislativo praticado na nossa jovem democracia, mas também suscitará indagações a respeito da higidez dos atos normativos editados pelo Congresso Nacional em vista da mácula em sua formação.
É certo que, numa democracia, espera-se que a política seja utilizada como mecanismo de defesa de interesses, numa sociedade pluralista, que conduz à formação das regras que nortearão a nossa vida em sociedade. É nesse contexto que surge aquilo que Jeremy Waldron chamou da contingência do Direito: o Direito, no Estado moderno, está sujeito a modificações, que devem ocorrer ordinariamente no meio político, pelos representantes legitimamente eleitos, no exercício regular de seus mandatos (observadas, por óbvio, as regras do jogo estabelecidas pelo Direito)[3].
Essa defesa de interesses degenera-se em corrupção quando se perde a ideia de bem comum que deve conduzir o processo legislativo e que constitui premissa norteadora da formação da vontade política e das leis.
Por isso, a ocorrência de “compra de leis”, além de colocar em xeque as bases em que se assentam o Estado de Direito, põe em discussão a possibilidade de aplicação de sanções jurídicas para o parlamentar e para a lei fruto da manifestação de vontade viciada. Surge, portanto, indagação sobre os efeitos dessa prática nefasta nos institutos da imunidade parlamentar e do controle de constitucionalidade.
Como se sabe, é para resguardar o adequado funcionamento da democracia que se conferiu a imunidade ao parlamentar no exercício de seu múnus público. No Brasil, a imunidade parlamentar não tem sido considerada barreira para a responsabilização penal dos parlamentares. De fato, é certo que hoje se entende que o parlamentar, no exercício de suas funções, está sujeito a um regime de responsabilidade não apenas eleitoral (perante os eleitores), mas também disciplinar e mesmo penal.
No que se refere à responsabilidade disciplinar, prescreve o art. 55, §1º, da Constituição Federal que “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membros do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”.
Na Ação Penal 470[4] (conhecida como processo do “mensalão”), o Supremo Tribunal Federal entendeu configurada a responsabilidade penal dos parlamentares e a prática de ilícito penal, tendo em vista a “comprovação do amplo esquema de distribuição de dinheiro a parlamentares, os quais, em troca, ofereceram seu apoio e o de seus correligionários aos projetos de interesse do Governo Federal na Câmara dos Deputados”.
Dissociando a discussão do período pré-eleitoral e afastando a tese do crime eleitoral de “caixa 2”, entendeu-se que “os parlamentares receberam o dinheiro em razão da função, em esquema que viabilizou o pagamento e o recebimento de vantagem indevida, tendo em vista a prática de atos de ofício”.
A questão é saber se o vício de vontade do parlamentar, se a corrupção da sua ação macula a validade da lei, por inconstitucionalidade. A inconstitucionalidade é um vício que deriva de uma relação de desvalor, que se configura pela desconformidade de determinado ato com a Constituição, atribuindo-se a esse vício uma sanção, ordinariamente associada à declaração de sua nulidade.
Há inconstitucionalidade formal quando não se observam as regras constitucionais “respeitantes à produção e à revelação de um acto jurídico-público”[5] (observância dos procedimentos necessários para a aprovação do texto normativo, como iniciativa, quórum e rito). A inconstitucionalidade material se manifesta quando ocorre uma lesão direta a “um enunciado substantivo da normação constitucional”[6].
Nesse juízo de desconformidade, assume-se que, em princípio, a vontade do legislador é irrelevante (até porque, dado que a lei é fruto do concurso de vontade de diversos agentes e decorre de um complexo processo, a ideia de vontade do legislador é uma ficção jurídica). Nesse sentido, há orientação antiga do Supremo Tribunal Federal de que “eventuais vícios que se possam verificar nos motivos do ato estatal não contagiam as normas nele veiculadas[7]”.
Esse pensamento poderia conduzir à conclusão de a corrupção de um parlamentar não seria juridicamente relevante para a realização do controle de constitucionalidade. Certamente, dado o contexto político e constitucional que vivemos, essa orientação será desafiada.
Nos autos da ADI 4.885, por exemplo, a AMB e a Anamatra postulam o reconhecimento da inconstitucionalidade formal da EC 41/2003, que instituiu o Fundo de Previdência para os servidores públicos, por entender que os atos criminosos praticados por parlamentares, constatados na já mencionada Ação Penal 470, importariam em violação ao art. 1º, parágrafo único, da Constituição, porque a Emenda Constitucional não expressou a efetiva vontade do povo (exercida por meio de seus representantes); art. 5º, inciso LV, da Constituição, em vista da ofensa ao devido processo legislativo; e aos arts. 60, § 2º, e 37, caput, da Constituição, porque não se observou materialmente o rito deliberativo para aprovação das emendas constitucionais e houve ofensa ao princípio da moralidade.
No parecer que apresentou na ADI, o procurador-geral da República, apesar de reconhecer que “o vício na formação da vontade no procedimento legislativo viola diretamente os princípios democráticos e do devido processo legislativo e implica, necessariamente, a inconstitucionalidade do ato normativo produzido”, pugnou pela improcedência da ação.
Segundo o PGR, “por força desses mesmos princípios, bem como em razão da garantia constitucional da presunção de não culpabilidade (art. 5º, LVII, da CR), é indispensável que haja a comprovação da maculação da vontade de parlamentares em número suficiente para alterar o quadro de aprovação do ato normativo, o que não ocorre na hipótese ora analisada”, dado que na AP 470 “foram condenados sete parlamentares em razão de sua participação no esquema de compra e venda de votos e apoio político”. Essa ADI, que se encontra sob a relatoria do ministro Marco Aurélio, está pendente de julgamento.
No plano da inconstitucionalidade material, examinando o conteúdo da norma, hoje já se admite que, no controle de constitucionalidade, se faça um juízo sobre fatos e prognoses legislativa[8]. É dizer que se leve em consideração, no julgamento de constitucionalidade, os fatos e o diagnóstico presentes no momento da elaboração da norma ou mesmo sua motivação.
Nos Estados Unidos, a possibilidade de realizar juízo de constitucionalidade a partir das motivações legislativas constitui um tema polêmico na prática constitucional da Suprema Corte.
Conforme nos relata John Hart Ely, a recusa do exame das motivações para a apreciação da inconstitucionalidade de uma dada lei deriva da dificuldade de determinar se uma motivação ilegítima influenciou uma decisão. Mas haverá situações em que “não haverá explicação alternativa legítima para o ato em questão, situações em que portanto é possível deduzir de modo responsável que o ato teve motivação inconstitucional”[9].
Apresentando um histórico do controle de constitucionalidade das motivações legislativas, Caleb Nelson, professor da Universidade da Virgínia, conclui que, a partir da década de 70 do século passado, a Suprema Corte expandiu as fontes de informação para passar a consultar dados relativos ao histórico do processo legislativo, o que até então se considerava fora dos limites do juízo de constitucionalidade[10].
É preciso destacar que esse procedimento foi adotado, inicialmente, para permitir a adequada proteção dos direitos fundamentais, notadamente os previstos na 14ª Emenda, no que se refere à proteção contra a discriminação (racial, religiosa e de gênero). Hoje, não obstante tenha sido superado o dogma de que as motivações legislativas não são judicializáveis, propõe-se que o exame das motivações legislativas adquira relevância para o controle de constitucionalidade apenas quando o ato normativo produz certos efeitos reais não albergados pela Constituição[11].
Nessa perspectiva, caberia voltar a nossa indagação, a respeito da viabilidade de declarar de inconstitucionalidade de uma norma que tenha atendido os interesses escusos de uma dada empresa.
De um lado, poderia se argumentar que, se a corrupção tiver sido causa suficiente para a edição do ato normativo, estaria viciada a vontade dos representantes e comprometida a motivação legislativa, a justificar o reconhecimento de sua inconstitucionalidade. Por outro lado, o atendimento de interesses escusos não significa necessariamente que os atos de corrupção tenham sido causa suficiente para a edição do ato normativo e que não se façam presentes razões jurídicas legítimas para a elaboração de uma lei geral e abstrata sobre determinado tema.
Para ilustrar, cogite-se da edição de uma lei instituindo programa de refinanciamento de dívidas tributárias que seja fruto de “atos de corrupção” de parlamentares. Essa lei pode ter beneficiado a empresa que a “encomendou” ilegitimamente para determinados parlamentares, mas também terá alcançado milhares de outros contribuintes que são totalmente estranhos ao processo de produção da legislação.
Pode-se opor a essa dificuldade, própria do juízo proferido em controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, que a censura pela edição de ato derivado de motivação espúria é cabível no controle difuso, concreto e incidental, com o afastamento da aplicação do ato normativo inconstitucional para aquele que diretamente deu causa ao vício na formação da vontade política e dela se beneficiou. Essa discussão poderia surgir, por exemplo, em ação de improbidade ajuizada contra aqueles que praticaram tais atos.
De todo modo, cumpre concluir que o grau de deformação do sistema político alcançou, no Brasil, não apenas o sistema político-eleitoral, mas também espraiou seus efeitos para o sistema legislativo, o que pode conduzir a uma nova reflexão sobre os limites do controle de constitucionalidade, que deve sempre estar atento aos perigos de uma judicialização excessiva da política. Sendo ou não motivo de orgulho, cabe-nos reconhecer a possibilidade de o Direito Constitucional brasileiro oferecer mais uma contribuição original para o rico debate sobre os limites do controle de constitucionalidade.

* Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
 
[3] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Cap. 1: a indignidade da legislação (especialmente pp. 13-20).
[4] AP 470, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-074 DIVULG 19-04-2013 PUBLIC 22-04-2013
[5] MORAIS, Carlos Blanco. Justiça Constitucional. Tomo I (Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade). 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.149.
[6] MORAIS, Carlos Blanco. Justiça Constitucional. Tomo I (Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade). 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.138.
[7] ADI 432, Rel. Min. Celso De Mello, Tribunal Pleno, julgado em 15/05/1991, DJ 13/9/1991. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal entendeu que não seria possível exercer juízo de constitucionalidade, em sede de controle concentrado, de portarias ministeriais a partir de consideranda do ato estatal.
[8] Vide decisão monocrática proferida nos autos da ADI 2.548, em 18/10/2005, pelo ministro Gilmar Mendes, na qual se cogitou a “a possibilidade efetiva de o Tribunal Constitucional lançar mão de quaisquer das perspectivas disponíveis para a apreciação da legitimidade de um determinado ato questionado. A constatação de que, no processo de controle de constitucionalidade, se faz, necessária e inevitavelmente, a verificação de fatos e prognoses legislativos, sugere a necessidade de adoção de um modelo procedimental que outorgue ao Tribunal as condições necessárias para proceder a essa aferição.” (Informativo 406 do STF).
[9] ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 184.
[10] Caleb Nelson, Judicial Review of Legislative Purpose, 83 New York University Law Review, 1784, 2008.
[11] Caleb Nelson, Judicial Review of Legislative Purpose, 83 New York University Law Review, 1784, 2008. pp. 1.850-1857.

 é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional. Doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito do Estado pela UnB. Professor de processo civil e advogado.

Fonte: Consultor Jurídico

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